Um blog em todos os sentidos, com umas coisas escritas por Leonardo Vinhas. Tudo que representa o presente e reflete o passado, sem vaticínios futuros.

Tuesday, July 10, 2007

El perro callejero

Não faz muito, apareceu um cão aqui em casa. Forte, bonito e saudável demais para ser um cachorro de rua. Tava na cara que havia escapado de alguma casa. Mesmo assim, escolheu nosso bagunçado quintal como residência e se estabeleceu aqui. Dormia ou debaixo dos carros, ou em cima do canteiro de tijolos que está ao lado da porta da sala desde sempre. Nos recebia aos pulos sempre que eu e minha namorada chegávamos em casa, e sempre nos acompanhava a pé até nosso destino, fosse a padaria ou o trabalho. Teve um dia que ele até tentou me acompanhar de carro, e eu tive que acelerar e fazer umas curvas desnecessárias para despistá-lo, com medo que ele fosse pego pelo imprevisível trânsito da Vila A.
Ele nunca cobrou nada de nós. Claro, era um cachorro, como ele iria cobrar alguma coisa? Mesmo assim, foi ele quem nos escolheu, e veio parar em nossa vida sem intrusão. Ele sabia qual era o limite dele, e nós também, não nos sentimos “donos” dele em momento algum, embora já estivéssemos vivendo como se fossemos adotá-lo. Minha namorada até já o tinha batizado de “Pitoco”, com um pouco de relutância de minha parte, embora eu não tivesse nome melhor para lhe dar.
Porém veio uma noite em que ele não retornou. Ele tinha me acompanhado até a academia, esperou um pouco, cansou-se e foi rodar por aí. E não voltara. Fiquei primeiro preocupado, depois triste, depois os dois. Mas entendi que ele deveria ter achado a casa dele – como eu disse, era um bicho bonito demais para ter vivido na rua. Eu e a Lidi nos consolamos com isso. “Pelo menos ele está na casinha dele”. E você sabe, não há lugar como o lar, mesmo que esse lar seja uma peça de kitinete solitária em algum endereço obscuro.
Mas não é que esses dias encontramos com ele nas ruas? Ele estava brincando por aí, com outro cão, ambos fortes e felizes, numa saudável irresponsabilidade de infância canina. Aí finalmente caiu em mim a ficha que dizia que ele (Pitoco foi só o nome que demos, ele não precisa de nome, pois ele sabe quem ele é), aquele cão, não pertencia a ninguém, a não ser à sua própria vida. É uma licença poética dizer que cachorros têm liberdade de escolha. Mas, honestamente, esse me transmitiu ter. Ele passava uma felicidade genuína quando estava por aqui, tanta felicidade como raras vezes me lembro de ter sentido. E quando o vimos na rua, ele passava a mesma felicidade, a mesma vitalidade. Ele estava fazendo o que tinha que fazer. Ele pode até não saber o significado da palavra “escolha”, mas ele estava vivendo intensamente, e sem encanações, sua vida. Por isso ele tinha uma aparência tão bela. Não tinha só a ver com cuidados, tinha a ver com viver com intensidade e desapego. Tem muitos cachorros que não conseguem fazê-lo, mas o número de pessoas assim certamente é muito maior.
E se ele quiser voltar, a porta estará sempre aberta. Mas ele nunca será nosso. Ele é dele mesmo, e de mais ninguém.

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4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

belíssimo texto, Leo. obrigado. abraço

5:29 PM

 
Anonymous Anonymous said...

Leo, você está realmente inspirado. Belos textos, aliás, mais do que isso, pois demonstram que você está muito bem. Fico feliz em saber. Qualquer hora nos esbarramos por aí.

5:01 AM

 
Blogger Túlio said...

trilha sonora para esse post: Cachorro Magro da IRIS.

8:54 AM

 
Blogger Leo Vinhas said...

Grande trilha, Tulio! Já ouviu a versão do TG? Ela caberia para outros momentos, já que a voz do Dary traz um sentimento diferente.

11:38 AM

 

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