Um blog em todos os sentidos, com umas coisas escritas por Leonardo Vinhas. Tudo que representa o presente e reflete o passado, sem vaticínios futuros.

Thursday, August 09, 2007

Benção, pai.

Nunca escrevi nada que preste estando sob o efeito de drogas. O primeiro texto que escrevi sob efeito da cannabis é tão risível que guardei a piada só para mim. Sob álcool, então, não redigi uma única linha que prestasse, embora tenha incluído um ou dois poemas juvenilmente alcoólicos em meu livro, o longíneo As Pérolas que Enriquecem os Porcos. E agora, sob o efeito de umas essências árabes, estou aqui, na noite quase fria de Foz do Iguaçu, envolto entre os fantasmas da minha vida e o receio da morte do meu pai.
Meu pai vai para a mesa de cirurgia amanhã (hoje). Vai passar por uma cirurgia simples nos testículos – o foda é a anestesia. O velho já agüentou sua cota de enfartes, um derrame ocular (não me peça pra explicar) y otras cositas más. O velho dele tentou dar cabo nele. É bem por aí. E isso nem é o começo, nem o fim.
Meu pai já passou por muitas. É um homem crédulo, inocente e até meio tolo, sob uma fachada de respeitabilidade e dureza. Não que ele não seja digno de respeito. Porra, claro que ele é! Mas o seu Hélio já aprontou as dele, e não estou falando só de inconseqüências adolescentes. Meu pai já magoou, involuntariamente, seus filhos. Já falou muito que não deveria ser dito, já falou muita besteira. Pegou pesado, bastante pesado, vez ou outra. É pouco transigente, bastante teimoso e nada fácil de lidar, mais ou menos como foram (são) seus cinco filhos, eu incluído. Mas também carrega uma doçura e um peso nos ombros que não é só bagagem. Assim como seus filhos também.
E, claro, o velho não vai ser eterno. Ele não vai durar para sempre. Não vai ter tempo de ver todas as outras cagadas que seus filhos vão cometer, não vai poder saber tudo o que a gente pensa, não vai ter a oportunidade de conhecer todos os nossos pequenos fracassos ou grandes vitórias. Ele já enterrou um filho, e pode bem ser que ele sobreviva a essa paulada (a reação dele à anestesia é o que preocupa a nós, familiares) para enterrar outros. Mas o receio fica. Somos todos humanos, e eu não sou menos que os outros.
Só que é complicado, cara. Muito complicado. Complicado você ser um cara que passou por umas e outras para provar pro velho que você era digno do amor dele. Complicado você ser um cara que ainda acredita em família, mesmo a sua e a dos outros não sendo nenhuma maravilha. Complicado principalmente porque você sabe que muito do que você é se deve ao fato de ter tido essa família, que se legou uma ou duas zicas difíceis de lidar, legou um tanto muito maior de coisas que te fazem feliz e em paz contigo mesmo.
Eu estou com medo. Estou tenso, apavorado, tentando dissimular e obviamente não conseguindo. A tal da morte faz parte da vida de qualquer um. Já dizia o Luis Fernando Veríssimo que “o homem não é o único animal que morre, mas é o único que pensa que é eterno”. Pois é. Deve ser um consolo legal. Mas é um consolo que eu não tenho mais. Claro que eu quero que exista alguma vida depois dessa, e espero muito que essa vida seja boa. E, porra, claro que eu penso que, se houver tal vida, meu pai merece tapete vermelho antes de entrar nessa. Com todas as cagadas que ele fez. Não sei se fiz mais, ou piores. Mas o velho fez as dele. Isso não tirou em absolutamente NADA o mérito das outras coisas que ele possa ter feito, e que efetivamente fez.
Acho bisonho, péssimo, essa coisa de querer se acertar com alguém antes do momento fatal (ainda que seja possível que o velho saia da sala de cirurgia saltitante e rebimbando de felicidade. É o que eu desejo). Nada do que está escrito aqui foi omitido do meu pai. Disse tudo isso para ele, talvez com outras palavras, mas disse. E disse pra ele também o tanto de coisas que julgava NECESSÁRIO dizer, muito mais coisas boas que ruins.
Mas não é questão de querer “me acertar”. É só sofrer por antecipação, ter medo, essas coisas tão humanas. Cara, é horrível e maravilhoso se sentir tão humano assim. Vou te dizer: não é hora para filosofar, não estou no clima para filosofar. É hora só de parar e pensar que, pô! Essa vida passa depressa demais. Poucas coisas duram, e a maioria delas não duram o quanto você queria. Você nem CONSEGUE fazê-las durar, quanto mais elas se perpetuarem por si próprias. Mas é foda, camarada. Muito foda. Dói perder alguém que é um referencial. Talvez o maior referencial. Muito possivelmente o maior referencial.
E aqui, eu vou me levantar e vou pensar duas vezes antes de me olhar no espelho. Porque eu tenho os mesmos olhos pequenos e repuxados, o mesmo osso esterno afundado, as mesmas pernas finas e tortas e o mesmo saco grande do meu pai. Tenho penteado dele, embora nossos cabelos sejam diferentes; tenho os trejeitos do velho; e tenho o mesmo coração combalido e auto-infligido de dores com as quais eu nunca sei como lidar.
Eu sou filho do meu pai, e gostaria de vê-lo caminhando comigo até o último dos meus dias.
Mas – claro – isso é egoísmo. E provavelmente não será assim.
Mas ninguém, nem eu mesmo, pode me culpar por estar triste e tenso. E querer chorar, muito.
Benção, pai!

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Eu sou a Patricia, colega e amiga do Leo. Também tenho um desabafo a fazer. Não é de medo, mas de saudade. Não pedi licença pra usar o seu blog, mas lendo seu texto senti vontade de escrever.
10 de outubro de 2006, pouco mais de 9h da manhã. Depois de passar a noite no hospital segurando a mão do meu pai e pedindo pelo amor de Deus que aquele sofrimento acabasse, ele se foi. A gente nunca imagina que vai acontecer com as pessoas que amamos, porque achamos que elas são eternas. E são, mas não da forma como gostaríamos. Ele teve câncer no intestino. Conseguiu operar e estava se saindo muito bem. Mas como essa doença é traiçoeira, teve metástase no fígado e precisou retirar 60%. Os médicos não tinham um diagnóstico preciso da situação dele e durante quase um ano (desde que descobriu o câncer) ele fez tratamento a base de remédios fortíssimos, dos quais ele sempre reclamava. Minha mãe diz que ajudaram a acabar com ele. Não sei. Na verdade, temos mania de tentar achar culpados pra tudo. E apesar de sabermos que a morte é nossa única certeza, nunca estaremos preparados. Ainda que te falem que seu pai tem três meses de vida. Ele se foi antes disso.
Tenho saudade.
“Eu só peço a Deus que a dor não me seja indiferente,
Que a morte não me encontre um dia, solitário sem ter feito o que eu queria.”

Neste domingo vou levar flores pra ele.

4:30 PM

 

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