Um blog em todos os sentidos, com umas coisas escritas por Leonardo Vinhas. Tudo que representa o presente e reflete o passado, sem vaticínios futuros.

Thursday, February 01, 2007

Ceifando vidas

A história tem elementos farsescos demais: um templo grande, pastores de salários milionários, fiéis de classe média baixa dando o que vai fazer falta no fim do mês, fiéis de classe muito alta dando os dólares que sobram na carteira, gente na coluna social, esquemas comerciais aplicados à conquista de novos membros; aliciamento, sedução e sevícia das “irmãs” mais dedicadas (e/ou iludidas) e repressões de todos os tipos e formas (mas só para quem está de frente para o púlpito, é lógico). Parece farsa, quase novelesca, mas é real e acontece aqui.
“Aqui” é Foz do Iguaçu e o tal templo é o da CEIFA – Célula Evangelizadora Integrada da Família, se não me engano. É uma das milhares de denominações evangélicas que pipocaram de meio século para cá e, para aumentar o viés novelesco, tem raízes nos EUA, terra de Jimmy Swaggart e tantos outros telepastores milionários que fizeram escola mundo afora, vivendo da exploração da culpa, do medo e da fragilidade alheios. É por aí que a CEIFA trabalha, só que ela tem um público alvo mais definido: a classe média em geral, com atenção especial àqueles que ou têm maior poder aquisitivo (desnecessário explicar por quê) ou maior poder de penetração social. Esses, talvez, sejam os mais importantes para eles: professores, chefes de repartições, jovens profissionais – qualquer um que seja bem-relacionado o suficiente para adotar o mesmo sistema de conquista de clientes que as Herbalifes da vida usam.
Primeiro é eleito alguém (religiosos adoram se sentir predestinados, não importa a que), segundo critérios mais ou menos variáveis, alguém para “trazer os irmãos do mundo para Jesus”. Se esse eleito conquista um número x, ele torna-se então “líder de célula” (daí o nome) e passa a gozar de respeito entre os demais membros e é aceito como líder perante a comunidade. E para manter esse “status” (cobiçado por quase todos que lá estão), deve seguir fielmente as ordens dos pastores e ministros, que recebem ordens, inspirações e mensagens diretas de Deus em suas linhas privativas e prioritárias de conversa com o Altíssimo, e as repassam diligentemente aos “eleitos”, para que esses zelem pelos seus discípulos e pelos “perdidos” que podem vir a ser recuperados para o Senhor.
Assim, graças a esses piedosos homens, ficamos sabendo que há um “espírito” para tudo que desvia o homem de seu plano de salvação: há o “espírito da bebedeira”, o “espírito do jogo”, da masturbação, do adultério, das drogas e, claro, do homossexualismo. Esses espíritos são confrontados em épicas “batalhas” (como os religiosos gostam de se sentir soldados!), mantidas em inacreditavelmente longas sessões de oração e humilhantes exposições públicas das vítimas desses “espíritos”, incluindo “testemunhos de cura do lesbianismo” e coisas do tipo. A vitória sobre esses “coisas-ruins” é comemorada em glórias de altos decibéis, e o ato de fraquejar à qualquer desses espíritos é vista como tentação e meios vis de escapar do plano divino.
Claro que todas essas “batalhas”, deveres e obrigações cobram um preço de quem se aventura a cair nesse lodaçal de cruzes e culpas. Esse preço aparece, via de regra, em neuroses cuja intensidade varia de acordo com o tamanho do pedaço de si que a pessoa precisou extirpar para entrar nesse “plano de salvação”.
Que o Brasil está coalhado de templos ruidosos que brigam para destruir a audição de Deus e o bolso dos fiéis, todo mundo sabe. Mas em Foz a coisa já se tornou opressiva. Não dá para caminhar dois quarteirões sem topar com uma dessas, o que não seria o problema, já que cada um é, em tese, dono de sua própria vida e, também em tese, sabe o que faz. Cada um reza como quer, onde quer e quando quer, isso se quiser rezar, evidentemente. Mas não vejo porque você teria que rezar junto com outros cujo Deus lhe dá náusea. E o Deus que esses pastores e líderes passam é bem desse tipo, uma espécie de tirano chantagista e sádico que fica lhe jogando na cara o quanto ele é bom e o quanto você, verme que já nasceu perdido, precisa dele. Um Deus que ajuda conforme a sua grana (graças não alcançadas são atribuídas a um coração fechado, e a abertura do coração é expressa pelas cifras que saem da sua carteira) e que age como uma espécie de financista estelionatário, prometendo lhe dar o dobro do que você investir. Um Deus que manda castigos, lições e provações ao menor deslize, um Deus que detona a saúde de crianças, levando-as até à paralisia, para ensinar “lições” aos pais. Um Deus que exige louvor em tempo integral, porque precisa ser lembrado que é o maior e quer que você diga isso para todo mundo. Eu não sei, mas esse Deus eu não sirvo e nem acho que Ele exista, mas se existir, eu espero que não cruze meu caminho. Eu não conseguiria conter o asco.
Não me vejo como um ser religioso e não me sinto à vontade em templos, mas não é segredo para ninguém que já sonhei ser padre. Mas é que o deus que eu acredito nem pede para usarmos letra maiúscula quando nos referimos a ele. Na verdade, acho que ele não pede muita coisa de nós, a não ser respeito e compreensão – para com ele, com os outros e com nós mesmos. Ele sabe que não dá para ser legal com todo mundo, mas isso não nos dá o direito de sair enchendo a cara de qualquer um de porrada – até porque há vezes em que nós é quem merecemos as bordoadas. Mas ele sempre dá um jeito de não bater tão forte e, quando pode, nos ajuda a nos esquivarmos. Ou a nos levantarmos depois da queda.
Desde que cheguei a essa região, convivo quase diariamente com membros e ex-membros dessa igreja. Desses últimos, colho histórias escabrosas demais para serem listadas aqui, principalmente por se tratarem de dados íntimos de outras pessoas: traumas, abusos e coisas desse tipo. Porque não são poucas(os) as(os) que abandonaram relacionamentos estáveis e sadios por indução de líderes e pastores ciumentos, que depois lhes revelaram que o Senhor tinha um chamado “mais particular” para cada uma delas, em lugares bem pouco religiosos. E também não é nada desprezível o número dos que caíram em intermináveis tratamentos psicológicos e até psiquiátricos, com direito a coquetéis de remédio tarja-preta, por causa dos traumas e das frustrações que ocuparam suas vidas.
Sobre certas coisas eu nunca gostei de escrever, e essa é uma delas. É fácil ganhar uma acusação de leviano, assim como é fácil ofender quem pára numa linha mais incômoda e descontextualiza todo o resto do texto. Mas há coisas que têm que sair da cabeça e ganhar o papel, senão ninguém dorme bem de noite. Se você está lendo isso, é porque eu superei o cagaço e resolvi dividir com alguém o sentimento de nojo que vem desses mercadores de fé preconceituosa.
Sobre os demais elementos do primeiro parágrafo, escrevo mais em detalhes quando achar a hora. Mas seriam mais anedotas tristes para ilustrar o ponto-de-vista com argumentos. A base está aí.
E tem algo que sempre penso sobre Deus. Me lembro do “Deus segundo Laerte”, para mim, mais “evangelizador” e mais divino que os próprios Evangelhos. No fim do primeiro livro, uma tira traz um diálogo entre ele (Deus, pô) e uma mulher de expressão pesada, que é mais ou menos assim:

Mulher: Isso tinha mesmo que ter acontecido?
Deus: Tinha.
Mulher: Você não podia ter feito nada para ter impedido?
Deus: Não.
Mulher: Se eu não posso contar com o poder da sua mão, com o que posso contar então?
Deus: Com o meu ombro.

E ele a abraça enquanto ela chora. É por aí.

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

olha só, Leo. La Carne em Curitiba dia 10/3. que tal?

9:23 AM

 
Blogger André said...

puta merda, arregaçou nesse texto. Precisava de algo assim pra dormir (olha a hora que to comentando...).

só pra constar, esses dias me contaram uma história de um jovem gay que foi arrastado pelos pais pra uma dessas sessões de "descarrego" que existem nas universais por aí. Não bastasse a enxurrada de humilhações que o jovem recebeu, o pastor ainda fez questão de ungir o ânus dele com um óleo de sei-lá-o-que sagrado.

9:10 PM

 

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