Um blog em todos os sentidos, com umas coisas escritas por Leonardo Vinhas. Tudo que representa o presente e reflete o passado, sem vaticínios futuros.

Thursday, April 26, 2007

La Carne

Quando escrevia seu livro sobre o La Carne, o Boi (vulgo do amigo Fernando Lalli) entrou em contato com vários músicos, jornalistas e incansáveis agitadores de shows para colher deles depoimentos, pareceres e informações sobre a banda. Eu fui um dos agraciados com a honra de fazer parte da obra. Então, numa manhã de segunda ou terça-feira, não me lembro ao certo, na qual acordei especialmente puto e com a certeza que precisava fazer alguma coisa urgentemente, me sentei à frente do micro e comecei a responder o que ele me perguntara. Foi um ótimo jeito de começar a tomar atitudes.
Esses dias, fuçando em meus arquivos digitais, encontrei essas respostas que lhe dera e resolvi transcrevê-las aqui tais como as redigi, a não ser por umas correçõezinhas ortográficas. Muito do que escrevi saiu no livro, mas mesmo assim, achei interessante colocar a íntegra aqui. Segue adiante.


Boi!

A demora foi grande, mas não excruciante. Portanto, sem mais delongas:

1) Conheci o La Carne pra valer através de Rubens K, baixista do Terminal Guadalupe. Estive em Curitiba em janeiro de 2005 e ele me mostrou o primeiro disco dos caras. Lembro-me de ter ficado apavorado com “De Uma Lembrança Estranha”, cuja constituição deslavadamente pop não escondia uma das letras mais fortes e diretas que já ouvi, uma sinceridade brutal bolada num groove que seria uma espécie de “New Model Army clichê”, caso houvesse existido algo assim alguma vez. Claro que já os havia ouvido antes – nos dois volumes da coletânea Graomphone Multimídia (dos quais sempre foram os autores das faixas mais destacadas), no programa Musikaos, da TV Cultura. Me recordo que a banda havia me agradado muito, e amigos sempre insistiam para que eu ouvisse a banda. Sempre faltava aquela combinação entre tempo e disposição. Até que chegou Curitiba...
E aí que eu fui trombar com os caras ao vivo na Outs, em São Paulo, no dia 01 de abril de 2005, cujo show presenciei e a respeito do qual fiz uma resenha para o Scream&Yell. Você estava lá, e sabe o que foi ver os caras lavando “É Baderna!” enquanto a cena de estupro do Laranja Mecânica corria solta no telão do bar. Não dava para deixar passar barato. A emoção do pessoal de Curitiba lá presente em “Desconhece o Rumo, Mas Se Vai” fez sentido para mim quando adquiri o disco e percebi aquela letra, aquela levada instrumental... Me voltaram à cabeça imagens da viagem à Curitiba, trechos de livros do Mario Bortolotto e a sensação de uma vida pela frente. Não dava para deixar barato. Tocaram covers de Ludovic (“Você Sempre Me Tem Aos Seus Pés”) e Nick Cave (“Papa Won´t Leave You, Henry”) como se ambas as bandas fossem iguais, e como se fossem canções deles. Não dava para deixar passar assim, de qualquer jeito. E, claro, tocaram “De Uma Lembrança Estranha”. Ou não. Mas posso estar errado.
Depois vim a entrevistar os caras em Taubaté, na Padaria Santo Expedito, o santo das causas urgentes. A urgência era bebida, entrevista para o Scream & Yell e minha ida à Foz do Iguaçu, onde hoje resido. E a urgência virou a amizade e a camaradagem. Nunca uma banda com tanto estofo musical e história pessoal fora tão humilde e cativante em uma entrevista quanto eles. Coisa de se contar para a mãe (claro que não o fiz) e para os filhos (outra coisa que NEM QUERO fazer). E depois teve o show, onde alucinei (uma constante nos shows do La Carne) durante várias faixas (em especial “Desconhece...”) e, por fim, assumi o microfone como conseqüência do descontrole em “Viaduto do Sol”, seguramente, a música mais filhadaputamente rock’n’roll feita no Brasil. Minha vida não teve um “antes” e “depois” disso. Só um durante.

2) E aí, depois de um tempo em Foz do Iguaçu (tempo suficiente para chamar Deus de viado na aduana Brasil-Argentina e cometer outras blasfêmias e sandices), fui parar em Curitiba no Rock de Inverno. Não obstante o excelente e também inesquecível show do Terminal Guadalupe naquele dia, muito do que se ouvia pelo 92 Graus era “espera só o La Carne” ou “que horas os caras [LC] vão tocar?” Era essa a expectativa de uma cidade onde uma ínfima parcela da população (a que interessa a mim) venera o La Carne como a voz do Messias na terra. Não sei se foi Deus quem falou naquele dia, mas parte do paraíso desabou nas minhas costas quando as cortinas do palco do 92 se abriram e os Quatro Cavaleiros do Dia-a-Dia apareceram tocando uma musica nova. Carlinhos e Jorge com suas expressões impassíveis, só lavando os instrumentos no sangue dos cordeiros inocentes vitimados pela caridade burguesa; Sidnei quase invisível de trás da bateria e Linari, em um mood especialmente Linariano, comandando o maior carisma que brota das entranhas daquela pança. O La Carne é assim. Assim foi, assim será, para sempre será, como diria o Elegia. E os escravos somos nós.
Se precisa de informação adicional sobre isso, posso dizer que escalei uma das colunas de sustentação do bar, poguei, fiz stage dive, rolei pelo chão imundo de cerveja enquanto arrancava forçadamente lágrimas dos meus olhos com minhas próprias mãos. Talvez estivesse tentando arrancar os meus próprios olhos para parar de ver o mundo com aquele coquetel de raiva e descrença que me era constante até então. Posso dizer que foi um dos melhores dias de minha vida, e nessa vida houve dias bons. Posso dizer isso, claro. Mas não sei se o farei. Está aqui, de qualquer forma
Sempre quando penso no La Carne, penso em Sangue. Não sei dizer porque exatamente (e se soubesse, não o faria), mas há algo em seu instrumental de New Model Army latino (reducionismo jornalístico barato) que lida com funções corporais e sensações emocionais. Digamos assim. Ou digamos que as letras de Linari cortam a carne (trocadilho involuntário) porque passam uma sensação que um pode vivenciar quando abandona a vidazinha medíocre e conformista do dia-a-dia. Não é uma música que se presta a bundões. Quem empurra os dias não consegue ouvir La Carne. Há mais do que coceira nas linhas e entrelinhas da banda. Há porrada, violência, empurrão, urgência. Beleza não sei, não sei se é belo o que vivenciamos aos trancos e barrancos. Mas há tesão, excitação, prazer imediato mas não hedonista. Prazer prolongado, quando a vida vira um prolongamento da música. Há zombaria de tudo, até mesmo quando um delegado Paranhos qualquer aparece para te foder a paciência, ou quando um especialista na questão vem trazendo a solução. La Carne é assim, goste quem gostar.

3) Por que o La Carne não toca nas rádios FM e AM? Ora, Fernando, pela mesma razão que somos o que somos: medo. Há medo de ter algo violento e lavado assim nas rádios. La Carne atormenta, não é choque gratuito para impressionar os grupos conservadores nem escândalo fácil para moleque chocar o pai. La Carne tem seu poder nas entrelinhas, e esse tipo de coisa não é o forte do brasileiro, que não sabe entender nem filmes sobre sua própria história se não tiver uma explicação didática padrão-Rede Globo no meio.
Há também, inegavelmente, um certo fator preguiça por parte dos caras. Eles tocam onde for necessário, é verdade, talvez preguiça seja uma palavra terrivelmente errada. Mas esses caras não sabem fazer social, sabe aquela mítica instituição sacramentada e burocratizada dos escritórios brasileiros? Então, é isso. O La Carne não tem paciência para fazer esse social, seja com diretores de gravadoras, promotores de TV, bandas amiguinhas e, principalmente, jornalistas. A “imprensa indie” (“independente” aqui é sinônimo de “não-remunerado”) vive de conchavos, troca de elogios e festinhas. Se o camarada dorme na casa do jornalista tal quando vai tocar em SP ou Porto Alegre, se fulano manda disquinho e camiseta de graça, põe o nome do show, divide umas brejas e a marofa... bom, aí ele “ganha destaque” no meio. E claro, tem que ser bonitinho também. Os caras do La Carne não são bonitinhos, nem a música deles o é. Não tem espaço para gente assim.
Não dá para culpar o jabá, no caso do La Carne. O problema é a preguiça – preguiça de ter a cara de pau de ser igual a todo mundo e pagar pau para gente bosta. Preguiça de participar da institucionalização da música e dos vícios de uma “indústria”, que de indústria só tem os vícios, já que não tem os lucros. Muitos chamam isso de preguiça, a maioria de ingenuidade, outros talvez chamem de burrice. Eu chamo de dignidade.


É mais ou menos isso, meu caro Fernando. Enquanto espero o mundo explodir aqui e me refaço de uns abalos, é bom escrever este texto. Estou a uma hora e quinze minutos de ir ao psicanalista. Falar sobre o La Carne é quase uma terapia. Ouvir o La Carne é uma transformação. Ser o La Carne... bem, isso é só para aqueles quatro caras.

Grande abraço!
Leonardo
Foz do Iguaçu, 28/08/006

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

fudidamente excelente e emocionante texto. roubei. abs

10:53 AM

 
Blogger fernando lalli said...

Esse texto é praticamente a base do livro.

Muito obrigado de novo, Léo!!!

6:58 PM

 

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