Um blog em todos os sentidos, com umas coisas escritas por Leonardo Vinhas. Tudo que representa o presente e reflete o passado, sem vaticínios futuros.

Tuesday, December 11, 2007

O Evangelho segundo Jesus Cristo


A peremptória recomendação de meu mui comentado amigo Boi e a gentil disposição de minha amiga Lesliane fizeram com que O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, fosse colocado à apreciação do meu parco entendimento. Desde então, os dias têm sido outros.
Saramago é detalhista para aquilo que é humano. Ele não gasta muito com descrições de paragens, embora o faça bem, mas é minucioso quanto a odores, sensações táteis, sons, visões, detalhes físicos, a tudo que os homens podem perceber. A partir daí, ele especula e constrói sobre o que os homens podem inferir baseados nisso. Essa construção já tinha me encantado, enternecido e também me assustado em Ensaio sobre a cegueira, onde a privação de um sentido leva a humanidade à extirpação de muitas de suas virtudes e valores, uma vez que a enorme maioria destes são baseados nas aparências. Foi uma leitura que me preparou o espírito (ironia involuntária, mas bem-vinda) para este Evangelho. Aqui, Saramago faz o mesmo processo, só que seus personagens são conhecidos nossos: a Sagrada Família. Talvez não tão conhecida assim, já que aqui Jesus tem, de fato, irmãos, conforme atestam os demais evangelhos sinóticos (para não falar dos apócrifos) e cuja existência sempre foi justificada por clérigos como “erro de tradução”.
Entretanto, erra feio quem julga (como eu julgava há uns dez anos atrás) que Saramago brinca de jogar pedras na cruz, apelando para o choque fácil ao mexer com símbolos sagrados. O que eu tenho lido até aqui (recém concluí a primeira metade de suas 448 páginas) traz um exercício de imaginação sobre o que teriam experimentado em seus íntimos os protagonistas de tão famosa história. Isso somado a um grande esforço de historiador, que reconstitui meios e métodos da época para contar a história sem deixar que nossa memória nos bombardeie com todas as relíquias imagéticas que formamos ao longo dos anos. Pensamos que José e Maria se punham aos carinhos e amores, mas fato é que naquele tempo às mulheres não se permitia sequer sentar-se à mesa em companhia do marido, quanto mais trocar arroubos afetuosos. Como essas, outras desconstruções se seguem, criando um Jesus tão homem quanto qualquer outro, tão egoísta quando adolescente quanto os adolescentes o são, tão apaixonado quanto os jovens costumam ser, para o bem ou para o mal.
Lúcifer não deixa de ser aquele que nos desvia dos intentos do Senhor, porém o faz para que Ele entenda que de nós não pode cobrar aquilo que não nos dá. As incoerências da Lei Divina – e dos atos humanos a ela ligados, que atravessaram os séculos e até hoje perduram ~ são escrutinados, desvelados e colocados diante dos olhos dos que querem e não querem ver. Imagino como deva ser penosa ou afrontante a leitura deste livro para quem não cede um milímetro em suas convicções doutrinárias
Acredito que Saramago deva ter escrito o livro sem levar essas considerações (muito) a fundo. Interessa-o aqui a história, os homens que a fizeram (ou que foram inventados para fazê-la) e as bobagens que se sustentam em nome dela. Também há, em mesma ou maior proporção, a beleza que emana daquilo que transcende uma mera consciência virtuosa da cristandade e que é na verdade o ser humano crendo em sua capacidade – e na mais absoluta necessidade – de ser solidário, sem que isso venha do Céu. É algo que parte de nós mesmos, e só de nós deveríamos esperar que partisse.

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