Um blog em todos os sentidos, com umas coisas escritas por Leonardo Vinhas. Tudo que representa o presente e reflete o passado, sem vaticínios futuros.

Thursday, November 29, 2007

Sobre mortes

Coloquei um dos meus CDs mais pesados, musicalmente falando, quando ia ao trabalho. Não adiantou: não era pesado o suficiente para abafar a cacofonia que me desviava de qualquer coisa que não ela própria. Ao voltar para casa, o fiz em silêncio. Nenhum som além dos produzidos pelo próprio veículo, só a música da minha alma, uma que eu não queria ter composto.
Alguém foi morto hoje. Mesmo que sobreviva, estará morto. Foi golpeado por mãos, pés e uma pá. Foi atingido na cabeça com um machado. Essas não são metáforas nem a descrição de um filme. Aconteceu hoje, aqui em Foz. Com um amigo.
Não cabe dizer amigo, nossa relação era tão efêmera que não entra naquilo que se chama de amizade. Uns churrascos compartilhados na casa de sua acolhedora família, não mais que isso. Mas ele era professor, assim como eu. Quando você ama uma profissão, ou nutre a ilusão desse amor, você meio que se encanta com outros que o fazem com o mesmo ardor que você. É uma tolice, eu sei, um laivo de ingenuidade que nos permitimos manter para tornar mais suportável a vida nesse ambiente de competição canibal que vivemos, de pressões auto-infligidas. Mas enfim, esse era, portanto, alguém com quem encontrava ressonância no trabalho.
Ele dava aulas no CIAADI, instituição “correcional” para menores infratores de Foz do Iguaçu (uma Febem com outro nome, digamos). Foi morto por dois de seus alunos durante uma rebelião. Seu corpo ainda está na UTI, pode até ser que ele se recupere apesar da gravidade dos ferimentos. Mas ele morreu.
Porque nós, que acreditamos que fazemos um pouco mais que dar aulas, valorizamos demais essa condição de entrar numa sala e tentar compartilhar algo com alguém. Você sabe, aquela história de que as coisas só mudam com a educação, nós acreditamos nisso. E não entramos nesse recinto para desfilar a vaidade de nosso suposto conhecimento, é uma crença, estúpida como a maioria das crenças, de que compartilhar algo que você adquiriu de bom pode mudar o mundo – ou pelo menos, o mundinho onde você habita, vai à feira, compra pão, esse mundinho. Claro, nos arrogamos uma certa pretensão de achar que o que temos a compartilhar é bom, porque a nós tanto bem fez. E vamos para as escolas ou similares em busca disso.
E aí você encontra indiferença abandono, descaso, tudo aquilo que você sabe que a comunidade concentra de pior. Parece ser isso a única coisa que muitos – alunos, os familiares desses alunos, muitos colegas de trabalho – têm a compartilhar conosco. E você morre um pouco.
A violência, a crueldade, leva essa morte até à aquela coisa que chamamos de alma. Seu espírito se vai, quando se vê invadido pela brutalidade que não se justifica nem numa lógica absurda: que a dirigissem a um carcereiro que abusava de seu poder era “lógico”, dentro de um distorcido senso de retaliação, mas a um educador? O que ele poderia ter feito para administrar um ódio tão exacerbado, tão movido à uma hiperviolência que não encontra paralelo nem com os piores exemplos fílmicos da barbárie.
Aqui haverá aqueles que, acertadamente, ponderarão que a barbárie sempre existiu, se desde Caim e Abel ou desde o primeiro primata que desceu da árvore não importa, mas sempre esteve aqui. E é onde eu me pergunto: somos, então, tão cheios dessa substância que chamam de maldade? Gostamos mesmo, temos tanto prazer na dor, em nos mostrar superiores, em ver o sangue da presa jorrar? E me pergunto também: o que estava na cabeça desses garotos? Eu não vou usar de recursos literários, não vou perguntar o que eles tinham no coração, foram seus cérebros que responderam a estímulos que estiveram sempre lá, certamente a explosão irracional da rebelião os levou a buscar no meio de suas entranhas essa realidade satânica. Mas o que estava, portanto, dentro deles? O mais velho tinha 14 anos. QUATORZE ANOS, PORRA! Dá tempo de fazer muita coisa nesses 14 anos, eu sei, mas me desculpe aí, Jack London, sei o que você diz da brutalidade que molda os homens em bestas-feras, sabe deus o que rolou nesses 14 anos. Mas é muito pouco tempo para criar essa maldade, ela já vem no sêmen, no abandono desses pais & mães que não conseguem lidar com os atos de seus pênis e vaginas, vem num monte de coisas.
E elas vêm para matar quem acordou para sonhar e pagar as contas.
A casa continua em silêncio. Eu continuo em silêncio. Não muito longe daqui, a violência grita. E essa ninguém consegue calar.


PS: escrevi esse texto na noite de quarta. Hoje (quinta) soube que ele saiu da UTI e vai se recuperar. Soube, também, que é a segunda vez que ele leva bordoada numa tentativa de fuga. Os dois guris lograram fugir. Nenhuma mídia noticiou o fato. Eles dizem que o CIAADI daqui é "modelo".

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3 Comments:

Blogger Túlio said...

a coisa mais triste que percebo de longe do Brasil é esse sentimento de "acostumação". A barbárie às vezes parece não chocar.

7:50 PM

 
Anonymous Anonymous said...

é Leo. Muito triste isso. Mas infelizmente é a realidade, muito pior do que qualquer ficção. isso me lembra uma frase de uma música nova do oaeoz que diz: "o mundo não merece minha compaixão, mas vou insistir assim mesmo até o fim". Joãozinho Podre estava certo: no future. Mas há que se viver, e alimentar algum tipo de esperança, nem que seja apenas no presente, no agora, aqui.

Mudando de assunto, muito bom revê-lo mesmo que por algumas poucas horas. Mas da próxima vez vê se deixa de frescura é só manda um e-mail ou telefone dizendo "tô indo". abs

11:15 AM

 
Blogger André said...

Estou simplesmente sem palavras. Força pra teu amigo.

3:59 AM

 

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