Um blog em todos os sentidos, com umas coisas escritas por Leonardo Vinhas. Tudo que representa o presente e reflete o passado, sem vaticínios futuros.

Monday, November 20, 2006

Algumas coisas requerem culhão

Uma aluna minha andou ausente por uns tempos. Eu já me referi indiretamente a ela aqui, quando falei sobre o dia em que li trechos do "Atire no Dramaturgo" na aula. É uma garota muito bacana, simples e roqueira, com aquele inegável pendor metal que acompanha boa parte da moçada rocker na adolescência. É também uma pessoa sensível que escreve muito bem e desenha melhor ainda. E é reservada, muito reservada.

Como eu disse, ela andou sumida. Consegui saber, através dela e de alguma de suas amigas que me transmitiam recados, que seu pai estava preso numa Casa de Detenção no Rio de Janeiro e sua avó paterna estava entrando num estado misto de depressão e histeria por causa da situação. A família do pai da menina acha que a garota é anormal por causa das músicas que ela ouve, das roupas que veste e do comportamento reservado. Talvez a preferissem se ela fosse uma patricinha biscate, já que esse parece ser o destino sonhado pelas mães para suas filhas adolescentes. A mãe da menina a tomou para si e faz o possível para evitar que ela tenha contato com o pai. Só que ela foi criada pelo pai e tem com ele aquela relação que eu, embora não goste muito da palavra, poderia definir como amor. Diria apenas, para ser mais justo, que ela gosta do pai além do que as palavras podem descrever, e que ela sente demais a falta dele, já que não o vê desde a Páscoa (a distância Rio-Foz é longa e cara, muito cara).

Há coisa de duas semanas, houve uma rebelião no presídio em questão e o pai dela foi baleado no rim, um órgão que já estava bem baleado pelo álcool que ele ingeria. Claro que a situação ficou feia. E quando a avó (mãe do cara) em questão soube disso, teve um ataque histérico seguido de uma pane cardíaca (desculpem-me pela falta de terminologia médica adequada). Coube a essa minha aluna a tarefa de cuidar da avó. E coube a ela toda a angústia da situação.

Cursos de idioma - inglês, principalmente - têm como parte intrínseca apresentações orais, que costumam variar do deleite ao tédio, dependendo do naipe dos alunos que você tem, e aqui estou falando mais do lado cultural/criativo/interessante da coisa do que do lingüístico. Costuma ser o ponto culminante do curso. E a garota me mandando e-mails e recados pedindo-me paciência e avisando que faria a apresentação dela tão logo pudesse ir pra aula. Eu sempre a esperei. Esperaria o que precisasse, mas hoje ela apareceu, e pediu para fazer a apresentação. Tivemos uma atividade e aí ela fez. E eu perdi as palavras até agora.

Ela contou, na frente de todos os outros, quase todos os lances que contei aí em cima. Alguns estão um pouco mais detalhados aí, mas ela não ocultou de ninguém. De postura firme e mãos trêmulas, ela contou tudo. Sem chorar, sem pedir pena, sem querer inspirar dó ou se martirizar. Só contou, e falou que todo mundo tem problema, e o dela não é maior que o de ninguém. É só que ela viu que não adianta ficar só chorando. Não é que chorar seja um problema, é que só chorar não resolve nada.

Foi só isso que ela disse, e sem qualquer um dos traços de pieguice que estão espalhados nesse meu texto. Falou com abertura e convicção. Não julgou nada nem ninguém. Quando terminou, o pessoal aplaudiu, começando pelo mais palha deles. E eu não tive o que dizer. Costumo falar o tempo todo quando estou em sala de aula, mas só fiquei quieto, de cabeça baixa, e disse que nada tinha a dizer. Ao final do horário, fui dar-lhe um abraço de lado e um beijo. Ela tem a maneira e a distância dela de lidar com seus sentimentos e eu não ia forçar qualquer intrusão. Mas me deu essa puta vontade de dar-lhe esse abraço.

Fui conversar com ela logo depois, e ela me surpreendeu ainda mais. Não me julgo no direito de escrever sobre o que conversamos, porque conversa reservada entre duas pessoas não é objeto para texto de blog. Perguntei quase nada e ouvi o que ela disse em concisas e contundentes frases. E não consegui dizer nada inteligente, nenhuma frase de efeito, nenhum momento genial. Só pude falar que o que ela fizera requeria culhão. E pude ainda chegar perto dela, dar um outro abraço e falar, meio entre os dentes e totalmente sem jeito: "pago pau pra você".

Ela riu o riso mais adulto que já vi numa adolescente e sorriu, seguindo seu curso.

5 Comments:

Anonymous Anonymous said...

vc nunca me disse que tinha um blog...
pensamentos, ideia, poren e entretantos da vida...
te admiro...

4:03 PM

 
Blogger André said...

mais um post antológico!

11:34 PM

 
Anonymous Anonymous said...

bonito isso.

8:23 AM

 
Anonymous Anonymous said...

Nada melhor do que ser você mesmo.
Beijos!

11:04 AM

 
Anonymous Anonymous said...

eu tb vou ficar quieto. abraço, Léo.

8:57 AM

 

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